Julho/2016: Lygia Bojunga

LIVRO: a troca

Pra mim, livro é vida;
desde muito pequena os livros me deram casa e comida.
Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo;
em pé fazia parede;
deitado, fazia degrau de escada;
inclinado, encostava num outro e fazia telhado.
E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro.
De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar prás paredes).
Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras.
Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.
Mas fui pegando intimidade com as palavras.
E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas.
Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação.
Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia;
e de barriga assim cheia me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu,
era só escolher e pronto, o livro me dava.

Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que
- no meu jeito de ver as coisas - é a troca da própria vida;
quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava.

Mas como a gente tem mania de sempre querer mais,
eu cismei de um dia alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra - em algum lugar -
uma criança juntar com outros e levantar a casa onde ela vai morar.

Lygia Bojunga Nunes.


Veja uma entrevista de Lygia Bojunga concedida em 2012 para TV Cultura Digital (clique no link abaixo):

   https://www.youtube.com/watch?v=9KKob3AWnGk




"... embora morando no Rio desde pequena, só conheci Santa nos meus dezenove anos. Me apaixonei logo pelo bairro. E sonhei um dia morar lá. (O sonho se fez verdade). Naquela época eu estava me preparando para um vestibular de medicina: meu sonho era poder aliviar o sofrimento de quem viesse a mim, quer dizer, dos meus pacientes. Mas no meu primeiro contato com Santa, o sonho deu uma guinada: ganhei um primeiro lugar nos testes que se realizavam para a peça que ia inaugurar o Teatro Duse, naquele bairro, iniciei em seguida uma carreira teatral muito intensa (mas curta), e meu sonho pegou o feitio de poder emocionar quem viesse a mim, isto é, o meu público. (Desde muito cedo senti atração pelo palco, inclusive, nas escolas, gostava de criar grupos de teatro amador.) Agora já faz tempo que – depois de encontros e desencontros com uma vocação que se anunciou nos meus 7 anos, quando inventei meus primeiros personagens – eu assumi por completo a minha vocação literária e o meu desejo de viver com livro, viver pra livro, viver de livro, sonhando alimentar a imaginação de quem vem a mim, quer dizer, de quem me lê."

(Lygia Bojunga em: http://www.casalygiabojunga.com.br/pt/acasa.html)



E desde esse dia eu confundo as palavras livro e livre

[...] naquele tempo escrever/criar personagens era, pra mim, uma forma de sobreviver e de poder construir a casa que eu queria pra morar (a Boa Liga); só depois, quando eu abracei a literatura, é que eu me dei conta que escrever/criar personagens era muito mais que um jeito de sobreviver: era – e agora sim! – o jeito de viver que eu, realmente, queria pra mim (CASA LYGIA BOJUNGA, 2011, online).

O luxo de corrigir e reescrever, somado à sensação da liberdade me rondando, me roçando, me envolvendo, fez uma impressão tão forte dentro de mim, que eu saí desse primeiro encontro pressentido que fazer literatura ia ser para mim uma imensa aventura interior. E desde esse dia eu confundo as palavras livro e livre: me acontece muito querer dizer uma e sair a outra. Não me enganei.

Junho/2016: Espelho


 ESPELHO, ESPELHO MEU....


O Espelho pode revelar ou esconder, ser realista ou distorcer, assustar ou encorajar, petrificar, aprisionar ou mostrar um mundo de possibilidades, depende de quem o olha, como o olha e para quê!

Desde tempos imemoriais podemos encontrar o tema do espelho, tanto em contos orais, como nas mitologias e na literatura. Todas estas modalidades de narrativas são ricas em espelhos ou seus similares (quadros, lagos, rios), que refletem, respondendo ou não às expectativas de seus interlocutores.

Na mitologia grega encontramos o tema do espelho no mito de Narciso (o ser entorpecido que só vê a si mesmo), em Eco (a repetição de si mesmo, a dificuldade de ver o novo, de buscar novas possibilidades, resultando no aprisionamento na projeção no outro) e em  Medusa (o medo que petrifica, paralisa e mata). Narciso morre porque olha só para si mesmo e Eco sucumbe na armadilha de projetar no outro a razão de viver. Medusa é o reflexo da sombra de Atená, seu duplo-contrário, revelando vaidade, inveja, agressividade irracional, injusta e indiscriminada. A morte de Medusa acontece ao se ver refletida no espelho. Simbolicamente funciona como um reconhecimento por parte Atená de condições indesejadas, que passam a ser vistas e reconhecidas com a incorporação da cabeça de medusa ao seu escudo. A sombra, uma vez acolhida,  deixa de ser assustadora e ameaçadora.